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Deus é desigual? Possui preferidos? Faz acepção de pessoas? Separa os seres humanos? Responder a essas
perguntas é essencial para abordar o problema da desigualdade na sociedade atual.  Mesmo ao leitor da Bíblia, pode
parecer que Deus esteja sempre fazendo distinção entre as pessoas. O ser humano foi criado macho e fêmea (Gn 1.27) e,
depois do pecado, Deus disse à mulher que o seu marido a governaria (3.16). Não apenas os primeiros irmãos desenvolviam
atividades econômicas diferentes – um era pastor, o outro, lavrador (4.2) –, como também o produto do seu trabalho foi
recebido de modo distinto por Deus – a oferta de um foi aceita, e a do outro, não.

Mais adiante, a população humana é descrita como “filhos de Deus” e “filhas dos homens” (6.2). Deus poupa a família
de Noé e destrói o restante da humanidade. Em seguida, escolhe Abrão dentre todas as famílias da terra para abençoá-lo, torná lo um grande povo e amaldiçoar os que o amaldiçoassem (cap. 12).

Prosseguindo, na legislação do Pentateuco, na Sabedoria e nos Profetas há distinção entre santos/puros e imundos, ou entre justos e perversos. Os justos são abençoados e prosperam; os perversos, não.
Alguns cristãos veem nisso uma razão para legitimar a desigualdade social – alguns prosperam porque são fiéis a Deus, outros empobrecem por causa do pecado. Porém, ler a Bíblia sob essa perspectiva é deixar de enxergar um aspecto igualmente importante e recorrente nas Escrituras: Deus não se prende às desigualdades sociais, culturais e religiosas que nós perversamente criamos ou reforçamos para determinar quem merece tratamento diferenciado. Pelo contrário, tanto a legislação da aliança no Antigo Testamento como o evangelho do
reino no Novo Testamento são enfáticos em denunciar a desigualdade e combatê-la.

Na lei mosaica, há diversas instruções que visam ao equilíbrio e à igualdade econômica do povo. Quem possuía terra,
durante a colheita devia deixar as sobras das espigas para o pobre e o estrangeiro (Lv 19.9-10). A cada 50 anos, no ano do
Jubileu, as propriedades voltavam aos proprietários originais e as dívidas eram canceladas. Isso evitava que a população se
tornasse escrava de grandes latifundiários (25.8-34). O escravo comprado devia ser libertado no sétimo ano (Êx 21.1-6) e,
quando alguém ficasse pobre e não conseguisse mais pagar as contas, a comunidade devia ajudá-lo, e não lhe emprestar mantimento visando o lucro (Lv 25.35-38).

A legislação sobre o estrangeiro é particularmente significativa. Do ponto de vista ritual, o estrangeiro era excluído da celebração da Páscoa, a não ser que desejasse se circuncidar  (Êx 12.43, 48).

Porém, como cidadão, ele devia ser tratado “como o natural”, amado e não oprimido (Lv 19.33-34). Essa instrução lembrava os israelitas de que eles também foram estrangeiros no Egito (Êx 22.21; Dt 24.17-18; 27.19).

Por mais que o ritual fosse definidor e construtor de uma visão de mundo e dos limites do quê e de quem é aceitável, a legislação sobre o estrangeiro é uma clara demonstração de que a ética social do povo escolhido de Deus transcende as exigências do culto. Não podemos transferir as regras do culto à sociedade, mas devemos transmitir o caráter do Deus que é cultuado ao modo como vivemos na sociedade e tratamos o estrangeiro. Há um exclusivismo ritual e de identidade do povo escolhido de Deus, mas uma inclusão no trato ético social.

O povo nem sempre obedeceu às instruções do Senhor e sofreu as consequências disso. Os profetas confrontaram a comunidade por não ser obediente à legislação da aliança e a condenaram nem tanto por seu culto pagão, mas sobretudo pela injustiça cometida. O primeiro capítulo de Isaías revela como a comunidade era religiosa e guardava os rituais (Is 1.12-15), mas não sabia fazer o bem, não praticava a justiça, não defendia o direito do órfão nem a causa da viúva (1.17). Ainda assim, quando o povo foi para o exílio, Deus o resgatou e prometeu um novo
tempo, um novo céu e uma nova terra, em que as pessoas edificariam casas e habitariam nelas, plantariam vinhas e
comeriam do seu fruto (Is 65.17-25; cp. Dt 28.30).

Uma metáfora de uma vida harmoniosa, equilibrada e sem desigualdades. Os ensinos de Jesus nos Evangelhos sobre a salvação e
a vinda do reino de Deus reafirmam a verdade sobre a convivência social e as relações econômicas entre as pessoas. A forte tradição judaica e a consciência de sua identidade de povo escolhido de Deus eram usadas por alguns para promover diferenciação entre as pessoas.

Cristo, porém, redefine a identidade do povo e reconfigura as suas fronteiras: entrar no reino de Deus não mais dependia da identidade racial, religiosa, social ou econômica, mas da fé e do arrependimento (Mt 4.17; Mc 1.15).

Assim, Jesus reflete a mesma mensagem ética dos profetas do Antigo Testamento.
Nossa identidade em Cristo deve se refletir no modo como nos relacionamos. Tanto os Dez Mandamentos (Êx 20) como a oração que o Senhor ensinou aos discípulos (Mt 6.9-15) incluem o respeito ao nome e à santidade de Deus (Êx 20.1-11; Mt 6.9-10), bem como a responsabilidade para com o próximo (Êx 20.12-17; Mt 6.11-15). Esses e outros ensinamentos devem nos inspirar a sermos seguidores de Jesus, fiéis à sua mensagem e comprometidos com o combate às diversas formas de desigualdade existentes na atualidade.

Pr. William Lacy Lane
Extraído de https://www.ultimato.com.br/