Bráulia Ribeiro
Extraído da Revista Ultimato
“Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
Só ficou no muro
Tristeza e tinta fresca […]
Por isso eu pergunto
A você no mundo
Se é mais inteligente
O livro ou a sabedoria?”
(Marisa Monte)
À medida que o Brasil vai se tornando mais evangélico observamos as marcas culturais do evangelicalismo se
misturarem à cultura popular e vice-versa. Missiólogos discutem a influência da cultura nos diversos modelos de
evangelho que temos pelo mundo usando dois conceitos, contextualização e sincretismo.
Entende-se por contextualização a expressão do conceito novo — a revelação do evangelho — por meio de
formas antigas e facilmente reconhecíveis pelo povo. O conhecido se torna a expressão do novo. Já o sincretismo trata de uma mistura promíscua, indesejada, das novas formas com conceitos antigos. É a revitalização do erro, que
se veste com uma fantasia brilhante e aparentemente nova.
O evangelho no Brasil — e, acredito, em muitos outros lugares — se acultura de modo contextualizado e sincrético ao mesmo tempo.
Para se discernir entre pureza e corrupção o trabalho é árduo, mas a discussão destes caminhos é hoje essencial para a saúde da igreja. Apenas o Espírito Santo e a Bíblia podem nos tirar do limbo de um semievangelho, que se
torna inócuo por ser equivalente.
Atualmente existe uma guerra entre os evangélicos no Brasil que nada tem de santa. É uma releitura cultural da velha disputa de classes. Apesar de não termos uma cultura de castas, como na Índia, nossa tradição social,
baseada em origem e poder econômico, é marcada pela exclusão de grupos sociais. Nos tempos coloniais, a família, o grau de proximidade da nobreza portuguesa, a cor da pele faziam a diferença. Hoje a subcultura à qual pertencemos, a linguagem que falamos, a música que ouvimos revelam o poder socioeconômico que temos.
As várias versões evangélicas atendem a subgrupos culturais diferentes e fazem concessões teológicas de acordo com a necessidade de cada um deles. O evangelho intelectual das classes dominantes requer uma lógica que se conforme ao discurso pós moderno.
O Deus tribal dos hebreus se transforma em uma força de amor despersonalizada e universalizante. Seguindo o
exemplo da Europa multiculturalista, o evangelho palatável à “intelligentsia” tem que relativizar verdades. Não existe adaptação sem comprometimentos. A moralidade bíblica é um peso muito grande a ser carregado. Existe uma
proposta de amor no evangelho, mas se exige para esta uma síntese hegueliana. Qualquer maneira de amar vale a pena, qualquer moralidade me diverte, desde que me satisfaça.
O evangelho das massas populares é simples: a entidade divina se tribaliza. Como qualquer proposta animista, o Deus tribal é pesado em suas demandas tributárias, requer riquezas em profusão e obediência cega às autoridades
sacerdotais. Ele tem necessidade de demonstrar seu poder em um jogo intimidatório. As bênçãos são subornos e o Deus tribal dança conforme a música do desenvolvimento econômico e distribui casas, carros zero e cargos políticos, premiando a servidão de seus fiéis.
Nas duas versões o evangelho de Cristo se torna “o evangelho do profeta Gentileza”. O “amor” do Cristo folclórico não é amor, é entretenimento.
Ele é simplório e ridículo. Quem é mais inteligente, o homem ou a lei, o livro ou a sabedoria? — pergunta Gentileza. O homem, a sabedoria que não está nos livros nem no Livro — respondemos.
E decidimos então apontar as torres de nossas igrejas para o centro da sociedade brasileira — o homem cordial que a todos agrada. A cultura brasílica, que não gosta de regras impostas, menospreza o Livro e reinventa em duas versões
um Deus sem leis e sem moral, que se ocupa de nos servir.
Concordo com Marisa que a parede cinzenta é mais triste do que se permanecesse pintada com os escritos coloridos do Gentileza. Contudo, não vamos trazê-lo para as igrejas. É melhor deixá-lo nas ruas.