Há pouco tempo, nossa história familiar foi marcada pelo sofrimento. Com direito a registro fotográfico. Sofremos, juntos, dois dias de dó, consternação e solidariedade. Na tabela de vacinação de Amanda, nossa netinha de cinco meses, estavam agendadas três vacinas. Fazer o quê? Mãe e filha foram ao posto de saúde para minutos difíceis. Quando coloco as duas na cena do sofrimento, estou pensando em dois tipos de dor: a da filha e a da mãe. Cada uma sofreu aquele momento a seu modo.
“Que maldade!” — teria pensado a filha, ao ser levada pela própria mãe ao “posto de tortura” para, sob suas vistas, ser submetida a três agulhadas nas perninhas, com a injeção de líquidos dolorosa. Em seguida, vem o choro. Um choro doído, profundo, sonoro. Na verdade, um grito de dor. Daqueles “esgoelados”, que doem na alma da gente. A criança, sentindo a picada, quer instintivamente tirar a perna, mas é contida pela mãe. E não é uma picada só, e “passou, passou”; são três: uma na esquerda e duas na direita. Sabe o que é eternidade? A terceira já encontra as duas em frangalhos.
A mãe faz o que precisa ser feito. Sem pensar, sem sentir, sem nada. Não é hora para isso. Se ela se permitisse, nessa hora possivelmente pensaria: “Será que isto está certo? Será mesmo necessário este momento? Será que minha filha, ao me olhar com este olhar de terror e súplica, compreende o que estou fazendo? Ou guardará para sempre, em sua memória infantil, a sensação irracional de desamparo? Como interpretará o momento de firmeza, em que a ‘ofereci ao incompreensível sacrifício’? É melhor nem pensar. Não é hora para isso”.
A perna de Amanda ficou dolorida, naquele dia e no dia seguinte. A cada toque involuntário, a dor e o choro sofrido voltavam, e lembravam a todos daqueles momentos terríveis. Contemplávamos com ternura e culpa aqueles olhos inocentes, marejados de lágrimas.
Passou. Ao terceiro dia, Amanda acordou sorridente, como de costume. Ufa! Ao vê-la sorrir, nossos cuidados também se dissiparam e aquele sentimento de culpa coletiva — por formação de quadrilha — também. Com o alívio, aos poucos, a mãe também voltou a sorrir.
Faríamos de novo? Faremos novamente? Sim. A tabela de vacinas está longe de estar preenchida. Mas esperamos que, com a idade, a menina sofra menos, ao enfrentar o momento com mais discernimento. E cresça em entendimento e confiança, de modo a perceber que essas dores são necessárias, pois evitarão dores maiores no futuro. Mesmo que ela ainda não saiba dizer “poliomielite”. São dores boas, afinal.
Foi inevitável que esse momento nos levasse a uma conexão com Deus; com o Pai que precisa levar seu filho para tomar suas vacinas. Acredito que ele sofra, ao nos ver sofrer; ao nos conduzir, ele mesmo, com a firmeza necessária, a momentos difíceis.
Penso também que ele deseje ver o dia em que lhe diremos: “Pai, eu compreendo que foi uma dor necessária. Apenas, não tinha maturidade para perceber, no momento. Perdoe-me se meu grito extrapolou os limites da submissão. Depois de tudo ter passado, dou-lhe graças porque não foi uma tribulação sem sentido. Ao contrário, sei que o Senhor me tinha no colo o tempo todo. E é assim que desejo registrar em minha memória mais profunda este momento de dor”.
Rubem Amorese
Extraído da Revista Ultimato